A pretexto do combate à globalização RENASCE A LUTA DE CLASSES
Fórum Social Mundial de Porto Alegre,
Gregorio Vivanco Lopes, colaborador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP José Antonio Ureta, pesquisador da Société Française pour la Défense de la Tradition, Famille et Propriété – TFP Editora Cruz de Cristo Ltda. Rua Águas Virtuosas, 1014- São Paulo (SP) - Tel (0**11) 3951-5574. Ó 2002 – Todos os direitos desta edição reservados Site para contato: http://www.tfp.org.br/ Ao leitor As agitações e o quebra-quebra promovidos por movimentos de esquerda em Seattle (EUA, 1999), Göteborg (Suécia, 2001), e mais recentemente em Gênova (2001), por ocasião da reunião dos Chefes de Estado do G-8, chamou a atenção da opinião mundial para um fenômeno que vinha despontando nos últimos três anos. Trata-se da contestação – por vezes violenta – contra a globalização e a atual ordem econômico-social etiquetada de neoliberal, levada a cabo por grupos aparentemente sem nexo entre si. Porém, bem observado o fenômeno, constata-se que essa luta tem servido de pretexto para a consolidação e entrelaçamento de tais grupos, que vão assim constituindo nova e perigosa rede internacional de esquerda, de cunho claramente anarquista. Assim, as manifestações de rua nas citadas cidades, bem como a realização do I Fórum Social Mundial (fevereiro de 2001) e o Fórum Mundial de Educação (setembro de 2001) preparam e delineiam os contornos de um novo bloco anarco-comunista mundial, ora em gestação. * * * O presente estudo denuncia esse imenso esforço de âmbito universal para a criação de uma nova Internacional comunista, desde já denominada nos meios da esquerda radical de Internacional Rebelde. É o próprio comunismo que ressurge, porém metamorfoseado, conforme previra o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. E desta vez levando claramente como companheira de viagem a “esquerda católica”. O combate à globalização é a ocasião – quase diríamos o pretexto – para que essas forças remanescentes se recuperem do trauma sofrido com a queda do império soviético e se reagrupem. Tal ocasião é bem escolhida, dado que um certo desagrado vai aumentando no mundo de hoje com relação à globalização, sobretudo com algumas de suas conseqüências práticas, como a perda de identidade das nações, o caótico movimento migratório etc. Subjacente às críticas feitas à globalização, tais forças de esquerda se lançam de modo bastante violento contra o próprio capitalismo, visado até nos seus fundamentos legítimos, como a propriedade privada e a livre iniciativa. Assim, no dizer delas mesmas, o combate não é dirigido contra qualquer globalização, mas sim contra a globalização capitalista. Os novos contestatários querem, também eles, uma globalização, mas de tipo anárquico-tribal, na qual, em última instância, sejam dissolvidas todas as nações e abolidas as autoridades, favorecendo assim o surgimento de pequenas comunidades autogestionárias, totalmente igualitárias. A TFP rejeita o falso dilema, muito difundido pela mídia, de que seria preciso optar entre “global” ou “não global”. Entrar nesse debate, tomando posição de um lado ou de outro, sem as devidas ressalvas, já é acentuar esse falso dilema. Uma sociedade autenticamente de acordo com a natureza humana desenvolveu-se na Civilização Cristã, e esta pode e deve ser restaurada, conforme o ensinamento dos Papas. * * * Um apanhado sucinto talvez ajude o leitor a manter no espírito os pontos essenciais desenvolvidos neste trabalho. Na Introdução encontram-se as bases do presente estudo e as distinções necessárias para bem compreendê-lo. A matéria do Capítulo I versa sobre a gênese, preparação e realização do I Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre – de importância capital nessa aglutinação das esquerdas – bem como o perfil ideológico de seus mentores. No Capítulo II fica demonstrado o papel-chave da “esquerda católica” na articulação que está dando origem à Internacional Rebelde; O Capítulo III torna claro – no contexto da ação das esquerdas desde a queda do Muro de Berlim – que o comunismo renasce agora, metamorfoseado; O Capítulo IV analisa o porquê de alguns grupos assumirem a violência, enquanto outros a rejeitam. E aponta para o fato de a direção dos fóruns, em particular o de Gênova, tomar uma posição de ambigüidade benevolente em relação aos violentos, aceitando-os em seu seio; No Capítulo V põe-se em realce o grau de engajamento dos católicos italianos na realização do Fórum de Gênova e suas manifestações de rua; o desconcertante apoio que dois Cardeais e muitos membros do Clero italiano deram ao evento, bem como seu recuo parcial após a violência desencadeada; No Capítulo VI são analisados os fundamentos doutrinários dos novos anarquistas e sua trajetória, partindo de Bakunin e terminando em Chomsky e Toni Negri, os principais ideólogos do neo-anarquismo e da Internacional Rebelde. Por fim a Conclusão indica que a verdadeira opção para o mundo hodierno não se encontra nos anelos igualitários por uma sociedade autogestionária, que tende a desembocar no caos, mas na sociedade orgânica, base fundamental da Civilização Cristã. * * * Os trágicos acontecimentos de 11 de setembro criaram um impasse inesperado para os propulsores da Internacional Rebelde: objetivamente ou não, boa parte da opinião pública mundial começou a relacionar com o terrorismo os novos contestatários, dado o caráter violento de muitas de suas manifestações[1]. O certo é que a rede mundial de movimentos de esquerda radical, reunidos na Internacional Rebelde, pode representar para a Civilização Cristã um perigo bem maior, do ponto de vista religioso-político-social-econômico, do que os terroristas do Al Qaeda. Alertar a opinião pública para a dimensão deste perigo, indicar-lhe as causas e sugerir os meios para evitá-lo é o objetivo do presente ensaio. Introdução
Lançamento de uma Internacional Rebelde, a pretexto de combater a globalização capitalistaQuando correntes ideológicas minoritárias conseguem capitanear anseios mais ou menos populares e dirigi-los para alvos predeterminados, como sejam as estruturas da sociedade, estas podem ser abaladas até seus fundamentos. Presenciamos hoje em dia o surgimento de uma nova esquerda, que se esforça em galvanizar um crescente descontentamento popular com o processo de globalização. Tal esquerda visa constituir uma Internacional Rebelde, à semelhança da ultrapassada Internacional Comunista. Plinio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, insigne pensador e líder católico, jamais acreditou que o comunismo – fruto de uma secular crise moral e religiosa – tivesse morrido. Assim como certos rios que se afundam na terra, correm subterrâneos e, mais adiante, voltam à superfície, o comunismo deveria necessariamente reaparecer. Não idêntico ao que era, mas metamorfoseado, requintado até[2]. Em 1992 foi publicada a 4ª edição em português de sua obra magna, Revolução e Contra-Revolução. O fundador da TFP brasileira aproveitou o ensejo para salientar um aspecto da realidade internacional que lhe permitiu conjeturar uma neo-revolução renascendo das cinzas do fracassado comunismo. Assim, com 10 anos de antecedência, Plinio Corrêa de Oliveira descreve precisamente o eixo em torno do qual – a pretexto de “globalização” – se desenvolve a atual confrontação ideológica entre o capitalismo vigente e o pós-capitalismo emergente. Ao prever as conseqüências do desmantelamento da URSS, afirma ele: “Por exemplo, a crescente oposição entre países consumidores e países pobres. Ou, em outros termos, entre nações ricas industrializadas e outras que são meras produtoras de matérias-primas. “Nasceria daí um entrechoque de proporções mundiais entre ideologias diversas, agrupadas, de um lado em torno do enriquecimento indefinido, e de outro do subconsumo miserabilista. À vista desse eventual entrechoque, é impossível não recordar a luta de classes preconizada por Marx. E daí surge naturalmente uma pergunta: será essa luta uma projeção, em termos mundiais, de um embate análogo ao que Marx concebeu sobretudo como um fenômeno sócio-econômico dentro das nações, conflito este no qual participaria cada uma destas com características próprias? “Nessa hipótese, a luta entre o Primeiro Mundo e o Terceiro passará a servir de camuflagem mediante a qual o marxismo, envergonhado de seu catastrófico fracasso sócio-econômico e metamorfoseado, trataria de obter, com renovadas possibilidades de êxito, a vitória final?” O I Fórum Social Mundial de Porto Alegre: ressurge a luta de classes em novas bases Em janeiro de 2001, teve lugar o I Fórum Social Mundial de Porto Alegre (FSM), convocado como desafio alternativo ao conhecido Fórum Econômico Mundial de Davos. O que levou Ignacio Ramonet[3], a intitular sua coluna editorial em “Le Monde Diplomatique” “Davos? Não, Porto Alegre...” A luta de classes Norte/Sul e a reconstrução da Utopia socialista tinham, de fato, recomeçado sob um falso dilema: pró ou contra a globalização! O slogan adotado pelo FSM diz muito: “Um outro mundo é possível”. Era, em fase adiantada de constituição, a Internacional Rebelde. A expressão foi usada pela primeira vez pelo próprio Ramonet, e tem sido repetida para designar o conjunto de associações e pessoas engajadas na luta contra a globalização. O presente estudo põe em realce o papel do evento de Porto Alegre nesse empreendimento, bem como o de seus principais promotores: a associação francesa Attac, o mensário parisiense “Le Monde Diplomatique” e a esquerda católica brasileira. Para a Internacional Rebelde, o fracasso do “socialismo de Estado” de tipo marxista não invalidaria outras formas possíveis de socialismo radical: vida comunal, democracia direta, autogestão dos trabalhadores, reabilitando até as teorias anarquistas de Mikhail Bakunin. Ademais, esse socialismo anárquico assumiria as lutas do novo “proletariado”, saído das barricadas da Revolução da Sorbonne, de Maio de 1968: as ofensivas antipatriarcais do feminismo; a defesa de pseudo-direitos das “minorias sexuais”; a promoção de estilos de vida “alternativos”; a liberalização da droga; enfim as “causas” de todos os ditos “excluídos”. A Internacional Rebelde, ameaça real – Papel da “esquerda católica” Para ser bem analisada, a Internacional Rebelde deve ser vista sob dois ângulos distintos e complementares. De um lado, enquanto reedita os erros do comunismo clássico, ela constitui uma força essencialmente anti-propriedade privada e anti-livre iniciativa, portanto anticapitalista, procurando exacerbar o confronto Norte-Sul.[4] De outro lado, traz elementos novos, carreados por movimentos ecológicos, indigenistas e outros, que já falam diretamente de anarquia, caos e misticismo revolucionário. Este último aspecto – o dos elementos novos – embora menos definido nos documentos da nova Internacional, é entretanto o por onde ela aparece mais dinâmica e mais capaz de arrastar as suas bases. Ao longo do presente trabalho, serão abordados indistintamente um ou outro desses aspectos do tema, conforme as conveniências de apresentação. No espectro da esquerda atual, esse neocomunismo, mesmo em ascensão, é por ora minoritário, por vezes até marginal. E não tem ainda força política para impor sua agenda aos partidos da esquerda clássica, como o PT brasileiro, o PS francês, o SPD alemão, o PSOE espanhol etc., dentro dos quais os novos anarquistas exercem importante influência, mas não decisiva. Porém, surfando por cima da onda “antiglobalização”, e propondo certas medidas “moderadas” para um “controle democrático” do processo de mundialização, poderá o neocomunismo alcançar força suficiente para integrar e até liderar uma Frente Ampla que, ela sim, flexionará a marcha dos acontecimentos no sentido anarquista. E poderá até – em meio a eventuais conflitos sociais graves – vir a assumir o governo em algumas áreas. É pelo menos o que deseja para certos países da América Latina um experimentado radical da Teologia da Libertação, o Pe. Joseph Comblin, ao qual nos referiremos no decorrer da exposição. O respaldo religioso é vital para o neocomunismo tentar sua aventura, sobretudo hoje em dia, em que um ressurgimento religioso na juventude surpreende os observadores, após mais de um século de inclemente propaganda atéia. As forças de esquerda encontram-se largamente infiltradas nos meios religiosos, inclusive, dói dizê-lo, na Santa Igreja Católica, baluarte natural contra o socialo-comunismo por sua missão, sua doutrina, sua tradição e sua estrutura divinamente inspiradas. No interior da Igreja, os corifeus da Teologia da Libertação e congêneres levaram a cabo um trabalho de demolição tão meticuloso e geral de tudo quanto pudesse significar resistências a uma investida marxista, que, sob esse aspecto, pouca coisa resta meritoriamente de pé. A tal ponto que, já em 1976, Plinio Corrêa de Oliveira pôde escrever: “O progressismo, instalado por quase toda parte, vai convertendo em lenha facilmente incendiável pelo comunismo a floresta outrora verdejante da Igreja Católica”.[5] Isso nos faz pensar nas graves palavras de Paulo VI sobre a autodemolição da Igreja e a penetração da fumaça de Satanás no Templo de Deus. Ou então na Alocução de João Paulo II, na qual ele denuncia a grave situação em que se encontram os cristãos de hoje: “Submersos no ‘relativismo’ intelectual e moral e por conseguinte no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo, por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos e sem moral objetiva”.[6] Cúpulas políticas e econômicas do mundo atual começam a perder a guerra psicológica Muito de passagem, queremos assinalar ainda um ponto que, embora esteja fora de nosso tema, é de capital importância para quem quiser, de futuro, empreender um estudo abrangente dos rumos seguidos pela civilização hodierna. Nosso tema é a Internacional Rebelde, sua formação, suas ações. Mas para ter o panorama completo, seria preciso analisar também quais têm sido as táticas dos dirigentes do mundo atual – são eles o alvo mais próximo das investidas desfechadas pela nova Internacional – para contrapor-se aos ataques que recebem. Em outros termos, em Seattle, em Porto Alegre, em Gênova, a reação das cúpulas dirigentes da política e da economia mundiais esteve à altura da contestação? Houve, sequer, uma reação? Não se trata, evidentemente, de uma reação armada, mas sim psicológica e propagandística. Tanto mais que uma reação policial mal conduzida pode pesar como fator adverso no tabuleiro muito mais importante da guerra psicológica, no qual a mídia exerce papel fundamental. Assim, pergunta-se: no jogo da guerra psicológica revolucionária, no qual a Internacional Rebelde vai atuando largamente, seus opositores souberam enfrentá-la à altura? Desejaram pelo menos enfrentá-la? Sem querer dar uma resposta cabal a essas indagações, todos os indícios parecem apontar para uma espécie de inércia das mais altas cúpulas, em alguns casos até de franca colaboração com o adversário, que faz temer uma derrota. Esta pode não ser iminente, pois a força e a pujança das atuais instituições ainda são muito ponderáveis. Mas, se depender da reação das principais cúpulas político-econômicas do mundo capitalista atual, não se vê como possa ser evitada – a longo, e talvez a médio prazo – a vitória dos contestatários. O fenômeno não é novo. O avanço da Revolução protestante no século XVI só foi possível porque muitos dos altos dirigentes da Igreja e da Cristandade o subestimaram, considerando-o “uma querela de frades”. A fraqueza de Luiz XVI diante das hordas revolucionárias de 1789 levou-o a capitular e não a enfrentá-las. Foi ainda a tática do “ceder para não perder” – em vez do lutar para não perder – que contribuiu poderosamente para a queda do czarismo na Rússia e a tomada do Poder pelos francamente minoritários seguidores de Lênin. A ascensão de Hitler na Alemanha encontrou campo propício na inércia da nobreza e até na conivência de políticos católicos, como o chanceler Franz von Papen. Algo de semelhante poderá dar-se na presente quadra histórica? Fica aqui o tema levantado, a fim de que o leitor possa tê-lo presente ao longo das páginas que seguem, embora o escopo deste trabalho e suas dimensões não permitam aprofundá-lo. Uma denúncia inspirada no amor à Civilização Cristã Em 1864 foi fundada a Primeira Internacional por um punhado de intelectuais e sindicalistas comunistas. Cinqüenta anos mais tarde, cavalgando correntes moderadas e aproveitando as turbulências de uma grande crise, os comunistas apossaram-se do Poder na Rússia e instauraram o maior e mais sangrento Império que a humanidade tenha conhecido. A nova Internacional Rebelde talvez sonhe em repetir esse golpe de mão. Ainda que seja depois de amanhã. O certo é que, desde ontem, seus componentes já se mobilizam, se reúnem, se estruturam e modificam profundamente os termos do debate. É preciso que a opinião pública esteja alerta para os riscos que isto representa. Eis a razão deste ensaio. Posta a atual ofensiva contra a propriedade privada e a livre iniciativa, desfechada em nome da “antiglobalização”, assim como dos esforços da neo-revolução contestatária a favor de um socialismo de tipo anárquico-libertário, os autores deste trabalho crêem ser seu dever sair a público para lançar a presente denúncia. Ao fazê-lo, eles não optam nullo modo pela “globalização”, a qual está erodindo gradualmente a soberania das nações. E a soberania representa para cada povo o que a propriedade privada representa para os particulares: uma condição para a própria liberdade e para o reto desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Desse modo, enquanto o socialismo-anárquico dos antiglobalizantes – a Revolução de amanhã – é intrinsecamente mau e antinatural, ao atacar elementos fundamentais de ordem natural, como a propriedade privada, a livre iniciativa e o papel subsidiário do Estado, o processo de globalização, ainda que fundado no capitalismo — considerado pela Igreja bom em si mesmo e condenável apenas em seus abusos — representa a Revolução de hoje, enquanto uma deformação e um excesso malsão do próprio capitalismo. Seja como for, o católico lúcido e fervoroso deve ter sempre em mente o ideal de Cristandade. Tender para ele no fundo de sua alma, e desejar ardentemente que a Providência Divina encaminhe as coisas de modo tal que a Civilização Cristã possa vir a ser restaurada na sua plenitude em dias melhores. Como diz São Pio X: “A civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe; é a Civilização Cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos” (Carta Apostólica sobre “Le Sillon”, de 25-8-1910). De nossa parte, recusamos formalmente a alternativa “global” ou “não global” como escolha necessária. A Santa Igreja Católica, ao ser fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, trouxe em si também as sementes de uma sociedade temporal cristã. Esta chegou a nascer, desenvolver-se e dar frutos abundantes no passado (cfr. Leão XIII, Encíclica Immortale Dei). Por que não poderá produzi-los também no futuro? A natureza social do homem como Deus o fez – e não como os utópicos de todos os tempos o querem – regada pela graça divina, tem possibilidades insuspeitadas de florescer em todos os tempos e lugares. Que tipo de sociedade poderá desdobrar-se organicamente, a partir do momento em que ocorra o espetacular triunfo do Imaculado Coração de Maria, previsto em Fátima por Nossa Senhora? Sobre isto teceremos algumas considerações ao concluirmos o presente trabalho. Capítulo I Porto Alegre, janeiro de 2001: embrião da V Internacional Rebelde“Contestatários do mundo inteiro, uni-vos!”A V Internacional – a Internacional Rebelde – teve sua gestação ligada a diversos grupos e pessoas de esquerda, entre os quais se projetam Ignacio Ramonet, diretor do mensário “Le Monde Diplomatique”, uma espécie de mentor intelectual do novo movimento, e sua equipe. Seguindo uma estratégia de expansão e de alianças com outros órgãos de imprensa estrangeiros – que divulgam como suplemento uma versão em língua local de “Le Monde Diplomatique” –, Ignacio Ramonet transformou o mensário francês numa potente máquina de difusão de idéias: 20 edições em 10 línguas, totalizando 1.200.000 exemplares. Ademais, seus parceiros representam, também eles, um tipo de jornalismo engajado nas lutas anticapitalistas. Por exemplo, o jornal comunista “Il Manifesto” difunde a versão italiana do mensário francês. Em Londres é o “The Guardian Weekly” que edita sua versão inglesa como suplemento. E no Brasil, a colaboração com os editores comerciais da versão portuguesa prevê o direito de transcrição gratuita para uma rede de pequenos órgãos ligados aos movimentos mais radicais da esquerda, como o MST. Mas para canalizar o descontentamento existente contra a globalização da economia mundial era preciso criar uma estrutura de conscientização e de mobilização no Hemisfério Norte e ligá-la depois aos movimentos do Sul, como os zapatistas, o MST, as FARC etc. A oportunidade para tal apareceu com as turbulências provocadas pela crise asiática de 1997. Num editorial de “Le Monde Diplomatique”, de dezembro daquele ano, sob o título Desarmar os mercados, Ramonet criticava o FMI e a OMC e sugeria a criação de um imposto sobre transações financeiras internacionais (a assim chamada Taxa Tobin). E se perguntava: “Por que não criar a ONG Ação pela Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos (Attac)?” – a qual “poderia agir como um formidável grupo de pressão cívica junto aos governos”. Attac: uma universidade popular voltada para a ação revolucionária? Em junho de 1998, constituía-se em Paris – com o nome ligeiramente alterado, mas conservando a sigla Attac – a “Associação para a Taxação das Transações e para a Ajuda aos Cidadãos”. Como membros fundadores figuravam conhecidos sindicatos, movimentos alternativos e periódicos da esquerda radical francesa. A unidade desse conjunto era assegurada pelo engajamento total de “Le Monde Diplomatique”[7]. A Attac atribuiu-se a missão de produzir informação (“do livro até o panfleto”) e de promover encontros locais, nacionais e internacionais para tornar-se conhecida do grande público. Ela se serve da Internet como principal meio de transmissão de documentos de estudo e de ligação entre a associação e seus aderentes, com vistas à ação. O progresso da Attac foi rápido. A primeira vitória do movimento deu-se em dezembro de 1998, quando o governo francês abandonou as negociações do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), depois de receber uma petição da Attac assinada por 100 mil franceses. Fortalecida com essa vitória, a Attac organizou no mesmo mês o primeiro encontro internacional para criar uma plataforma mundial, reunindo em Paris cinqüenta representantes de 11 países. Seis meses mais tarde, realizou-se um Encontro Internacional da Attac, que contou com a participação de 113 delegações, vindas de 70 países. Nesse encontro os delegados decidiram participar da mobilização contra a Rodada do Milênio da OMC, em Seattle, e promover uma “petição mundial” em favor da Taxa Tobin. A rede em ação: tentativa de virada histórica em Seattle Em Seattle, cerca de 750 ONGs inscreveram-se para participar de uma assim chamada Rodada Alternativa, em oposição à Rodada do Milênio, exigindo a supressão da Organização Mundial do Comércio. Ou, pelo menos, que se incluíssem nas negociações dispositivos de proteção das vantagens sociais alcançadas pelos trabalhadores, assim como cláusulas protegendo o meio ambiente. Então, uma manifestação organizada pelos poderosos sindicatos americanos e pelas ONGs teve uma amplitude e uma violência que de há muito não se observava nos Estados Unidos. A cerimônia de abertura da Rodada do Milênio teve de ser cancelada, porque os manifestantes impediram que grande parte dos delegados chegasse ao local. Ademais, por não estarem bem preparadas, as negociações fracassaram. Para o arquipélago contestatário, Seattle foi considerado uma imensa vitória e uma virada histórica, tanto pelo número de organizações que participaram da iniciativa, quanto por sua diversidade. Entretanto isso não parece ter representado um avanço na conquista da opinião pública. Outra vitória alardeada a propósito de Seattle foi o sucesso das operações de “desobediência civil” que desarmaram a polícia e impressionaram os delegados. Mas talvez o maior triunfo tenha sido o “mediático”, dando visibilidade artificial a grupos até então inteiramente desconhecidos, que passaram a ser chamados de “o povo de Seattle”. A articulação contestatária Norte/Sul A mobilização de Seattle serviu ainda para fazer convergir as reivindicações dos revolucionários do Hemisfério Norte com os do Hemisfério Sul. De tal sorte que o II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo – que teve lugar em Belém do Pará, em dezembro de 1999 – já incluía em sua Declaração final, além das habituais insistências na Reforma Agrária, autonomia indígena etc., temas como direitos dos inválidos e exigências de homossexuais e feministas. Também a reunião da ONU, realizada em fins de junho de 2000 em Genebra, foi aproveitada para organizar mais um encontro alternativo. A grande novidade dessa jornada foi o anúncio do nascimento do Fórum Social Mundial (FSM), cuja primeira reunião deveria ser realizada em Porto Alegre, simultaneamente ao Fórum Econômico Mundial, de Davos. Formou-se então um comitê internacional de preparação do Fórum. Na realidade, o FSM já vinha sendo arquitetado nos bastidores pelos dirigentes da Attac França e por representantes da esquerda católica brasileira. Eis como Bernard Cassen, presidente da Attac e um dos principais articuladores do projeto, relata a origem e o desenvolvimento da idéia: “Em fevereiro de 2000, durante uma discussão com Chico Whitaker[8] e Oded Grajew[9], em Paris, surgiu a idéia de organizar o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Lembro-me de ter-me precipitado em seguida na sala do diretor de redação do jornal, Ignacio Ramonet, e de lhe haver dito: ‘Ignacio, nós vamos montar uma operação histórica: vamos afundar Davos!’ .... nós decidimos, no ato, que o Diplô colocaria todo o seu peso na balança para concretizar a idéia. .… “Uma ratificação internacional do projeto era indispensável. A ocasião seria dada pelo Fórum alternativo à cúpula social da Organização das Nações Unidas (ONU), a ser realizada em Genebra, na Suíça, no fim do mês de junho e em cuja preparação a Attac francesa estava participando ativamente. Diante de uma platéia de cerca de 200 representantes de movimentos sociais dos quatro continentes, Miguel Rossetto, vice-governador do Estado do Rio Grande do Sul, expôs as grandes linhas do que seria o Fórum Social Mundial e convidou os presentes a se mobilizarem no quadro de um comitê internacional de apoio para garantir seu êxito. O FSM estava, a partir desse momento, na órbita internacional”.[10] Desde a sessão inaugural, tom «libertário» Na sessão inaugural do Fórum Social Mundial, a atriz Celina Alcântara, com a parte superior do corpo completamente desnuda, declamou um texto do sociólogo marxista uruguaio Eduardo Galeano. Nele se descreve um mundo futuro no qual triunfarão o igualitarismo – “não haverá meninos ricos”, “ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão” etc. – e o permissivismo moral aliado à blasfêmia – “a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo”. [11] Os participantes representavam um vasto espectro do horizonte esquerdista. Desde um terrorista colombiano, que se apresentou como “Comandante Cifuentes”, passando pelo velho ex-Presidente da Argélia, Ben Bella, até representantes do movimento PROUT (Teoria da Utilização Progressiva) da Índia, que promove uma fusão entre o socialismo e a tantra yoga, e que goza da simpatia de Genésio Darci (o ex-frei Boff); desde Ricardo Alarcón, o terceiro homem do regime castrista, passando por Lula e Frei Betto até José Bové, o agitador das Ligas Camponesas da França[12]. Do megaevento participaram perto de 20 mil pessoas, de 117 países, incluindo 2 mil jovens e 700 índios que acampavam em parques da cidade. Para completar, havia 1870 jornalistas. As mesas com painelistas (expositores) reuniam-se pela manhã; as oficinas (definidas como reuniões de debates, relatos de experiências e ocasião para articulações) de iniciativa dos delegados, à tarde; e na sessão vespertina eram apresentados os “testemunhos”[13]. Ainda no contexto do Fórum, dois eventos simultâneos foram inaugurados, dirigidos por agentes de esquerda: o 1º Fórum Parlamentar Mundial com mais de 400 parlamentares de cerca de 30 países e o Fórum de Autoridades Locais, ao qual compareceram 150 representantes de prefeituras da América Latina, Europa e África. Incompreensível “déficit democrático” dos dirigentes “A verdadeira riqueza do Fórum e sua força inovadora brotaram das oficinas propostas pelos participantes”, festeja Cândido Grzybowski em seu balanço[14]. A prioridade foi dada ao caráter “libertário” e ao engajamento do público. Por isso, tanto parlamentares quanto políticos não tiveram “o direito de apresentar nem gerar projetos, mas unicamente de acompanhar as propostas impulsionadas pelas comunidades, que são a emanação direta da base e refletem as realidades do terreno”[15], comenta, entusiasmada, Marina Galimberti, animadora das Pénélopes, entidade francesa integrante da importante rede Womenaction2000, organizadora da Marcha Mundial das Mulheres. Dir-se-ia então que o FSM foi um modelo de democracia direta e participativa, à imagem do outro mundo possível em construção... Entretanto, por detrás dessa aparência, certos relatos mostram que o ambicionado “novo mundo” não começa muito diferente da democracia popular soviética, governada pela Nomenklatura. Ou seja, a proclamada “liberdade” é para o palco; nos bastidores é que as coisas se decidem. A ativista canadense Naomi Klein fustigou nestes termos “o desanimador déficit de democracia do próprio Fórum Social Mundial”: “A estrutura organizacional do Fórum mostrou-se de tal modo opaca que era praticamente impossível descobrir como se tomavam as decisões e quais seriam os meios para questioná-las. Não havia plenárias abertas nem a chance de votar uma estrutura para futuros encontros. Na ausência de um procedimento transparente, uma ONG feroz comentava que, por detrás dos bastidores, estariam acontecendo verdadeiras batalhas sobre as ‘estrelas’ que teriam mais tempo de exposição na mídia, quem teria acesso à imprensa e quais seriam os ‘eleitos’ como sendo os verdadeiros líderes daquele movimento .… A democracia dentro do próprio movimento precisa se transformar na sua mais alta prioridade”[16]. Não se apresentou alternativa ao capitalismo Outra carência do FSM: na hora de colocar no papel os valores alternativos, a diversidade de propostas era tal que já no terceiro dia foi preciso renunciar à possibilidade de publicar uma declaração final, como previsto. Para Naomi Klein, “no final, o Fórum não falava em uníssono”. Essa diversidade de propostas chegou a ser defendida por alguns, como Átila Roque, que – relata Klein – declarou: “honestamente, não tenho saudades do tempo em que todos nós estávamos no Partido Comunista”[17]. Exceção foram os apelos em prol de uma democracia direta, de tipo autogestionário, como modelo para a sociedade e para o próprio movimento contestatário: “Em Porto Alegre”, prossegue Naomi Klein, “a resposta mais convincente à falência internacional da democracia representativa pareceu ser esta forma mais radical de democracia: a democracia participativa. .... O que parecia emergir de modo orgânico do FSM: uma visão de rede internacional, cada vez mais coesa, de iniciativas locais, cada uma delas construída através da democracia direta”[18]. Porto Alegre significou o reforço da dinâmica contestatária em curso, ainda à procura de um novo paradigma doutrinário. Essa indefinição de objetivos positivos – os negativos estão muito claros, a demolição da atual ordem político-social-econômica – não deve surpreender. A Revolução igualitária e anticristã que vem se processando no Ocidente desde o século XV[19] – e da qual a Internacional Rebelde procura ser a ponta de lança em nossos dias – não tem em vista construir nada, a não ser de modo acidental. Ela é essencialmente destruidora do edifício da Civilização Cristã e nos faz pensar num caos programado. Tal edifício chega lamentavelmente ao século XXI em ruínas e quase irreconhecível, mas ostentando ainda em seus destroços uma força de resistência que surpreende. E que parece prenunciar dias melhores que lhe estão reservados pela Providência Divina. Assim, o próprio capitalismo atual é odiado, não pelo que ele possa ter de realmente censurável em alguns de seus aspectos, mas pelo que representa de defesa da propriedade privada, da livre iniciativa, da ação subsidiária do Estado, estes sim valores autenticamente cristãos, como ensina a doutrina social da Igreja. União dos contestatários numa Internacional para a «guerra social planetária» Em artigo para “Le Monde Diplomatique”, Bernard Cassen afirma: “o que aconteceu na capital gaúcha constitui uma verdadeira virada” que confirma “a perspectiva de ver constituir-se [em Porto Alegre] o embrião de uma verdadeira Internacional rebelde”[20]. Segundo o boletim eletrônico da Attac, citando Marc Delepouve, essa “Internacional rebelde” compõe-se de cinco grandes ramificações: “– Poderosos sindicatos, como a CUT do Brasil, a COSATU da África do Sul ou a KCTU da Coréia do Sul; sem contar o engajamento crescente da central sindical dos Estados Unidos (a AFL-CIO); “– A internacional camponesa, Via Campesina, que agrupa entre outros o Movimento dos Sem-Terra do Brasil; o poderoso sindicato dos agricultores da Índia, o KRSS; e a Confederação Camponesa da França; “– Inúmeras associações, entre as quais a rede internacional de Attac; “– Uma multidão de organizações sindicais ou políticas; “– Redes de políticos com mandato eleitoral”. Por sua vez, Ramonet afirma que os ativistas sociais “deram impulso ao que pouco a pouco acabou sendo uma nova guerra social planetária”, na qual “apesar da heterogeneidade das reivindicações, uma convergência efetiva se produz entre o campesinato, sindicatos operários, grupos ecologistas, novos movimentos de ação cidadã como Attac, organizações feministas, grupos de defesa dos direitos dos indígenas, aos que se soma uma nova geração de jovens militantes que aportam um entusiasmo novo”. “Nunca havia se produzido uma convergência de tal envergadura. .... Face ao rolo compressor da globalização, unem-se movimentos e organizações ligados a classes diferentes e a setores muito díspares, de trajetórias diferentes e posições ideológicas contrastadas”. E resolve profetizar : “Ainda não existe uma Internacional de protesto contra a globalização, mas já se escuta em todo o planeta este grito forte: Contestatários de todo o mundo, uni-vos!”[21]. Capítulo IIA “esquerda católica”: companheira de viagem da neo-revolução anárquico-marxistaJá nos referimos, de passagem embora, ao papel fundamental da esquerda católica no processo de formação e nas atividades da Internacional Rebelde. Não se trata apenas de uma contribuição revolucionária a mais, como a de uma ONG. Mas, dado o passado entranhadamente cristão da Europa e da América, como também de parcelas ponderáveis dos outros continentes, nada indica que a Revolução anárquico-socialista de nossos dias pudesse vislumbrar verdadeiras possibilidades de êxito se não tivesse conseguido infiltrar-se a fundo nos meios católicos. Tanto mais que o edifício a ser demolido é, em ultima análise, o que ainda resta de pé da Civilização Cristã de outrora, após séculos de investida revolucionária. Sob esse ponto de vista, interessa vivamente acompanhar a movimentação dos chamados “teólogos da libertação” que, mesmo após serem censurados pela Santa Sé, continuam a atuar, embora com menos evidência. Um deles, o Pe. Joseph Comblin, publicou recentemente um livro sob o título América Latina 2001. Análisis de coyuntura. Nessa obra, ele aborda o difícil obstáculo que constitui para as esquerdas, o fato de o povo continuar em boa medida infenso à propaganda revolucionária. Para esse sacerdote, a saída seria esperar o advento de novas lideranças, bem como o surgimento de perturbações sociais que possam servir de ocasião para um golpe. Mas o maior interesse do texto não está tanto na solução que ele propõe, quanto na constatação de que a esquerda revolucionária é impopular e que busca desesperadamente um meio de contornar essa situação: “Continuamos em noite escura”, afirma o ex-professor do ex-Instituto Teológico de Recife, fundado por Dom Helder Câmara, o Arcebispo Vermelho. “Entretanto, estão aparecendo luzes – somente algumas luzes – que poderiam anunciar novos tempos .… estão aparecendo sobretudo no primeiro mundo. O terceiro mundo – até agora – está tão desarticulado que não participa muito neste movimento. .… Há sinais de um despertar, mesmo que a máquina de poder seja ainda tão forte que consegue impor-se e manter a passividade das grandes massas. .... “O que pode acontecer então nos anos vindouros? Haverá explosões sociais? .... Os líderes das esquerdas tradicionais já estão muito desgastados e sua estabilidade muito diminuída. Vai ser preciso aparecer novas lideranças. “Os cristãos devem participar nos movimentos paralelos ilegais ou semi-ilegais? .... Esta pergunta fora levantada há 30 anos, quando apareceram os movimentos guerrilheiros violentos e então houve várias respostas, porém a imensa maioria dos católicos não se integrou. Agora a questão é diferente, porque .… são movimentos mais complexos .… que não se propõem explicitamente a violência, ainda que em determinados momentos estejam de fato implicados em situações violentas. “Qual deve ser a participação dos cristãos em tais movimentos? Não se pode dar normas gerais, porque cada caso será particular, e sempre existe este desafio para os católicos. .… Então nessas circunstâncias que se aproximam de nós, não devemos nem podemos criar ou elaborar todo um programa de transformação social – não temos a força para isso –, mas teremos que nos definir e escolher um rumo, quando aparecerem todos os movimentos esperados, toda a perturbação que se espera, os novos líderes, os novos movimentos que vão aparecer” [22]. Como se vê, o Pe. Comblin “nada aprendeu, nada esqueceu” das lições do século XX e, no meio da noite escura das esquerdas, aferra-se a desacreditadas táticas leninistas e as deixa como testamento aos que ainda sonham com o Grande Dia. Porém, outros “teólogos da libertação”, ante a mesma constatação de fracasso do marxismo, resolveram aproveitar a onda de contestação “não global”. Saíram de suas tocas, metamorfosearam seus rostos e apresentam novas denominações adaptadas às novas lutas: teologia indígena, teologia feminista, teologia negra, teologia do corpo, eco-teologia [23]. Da caridade ao “terceiro-mundismo”: baldeação ideológica inadvertida As antigas agências católicas de caridade – hoje mudadas em centros de “ajuda humanitária” ou de “solidariedade” – têm sensibilizado nas últimas décadas os católicos da Europa e dos Estados Unidos para as necessidades do Terceiro Mundo. No começo, tratava-se de uma ajuda “missionária”, destinada primordialmente à evangelização de populações primitivas. Depois, essa ajuda passou a ser solicitada para que as “igrejas locais” pudessem ajudar materialmente o povo das favelas. Numa terceira fase, a ajuda era pedida para “projetos de desenvolvimento” propulsionados por instituições católicas. E por último – ainda que continuando a ser solicitada com uma finalidade vagamente religiosa – a ajuda passou em vários casos a ser encaminhada para a chamada “luta da libertação”: financiamento de greves, de movimentos revolucionários, até da subversão armada de inspiração marxista, como no caso dos “movimentos de libertação” da África Austral. Para obter contribuições generosas, as respectivas agências não hesitaram em recorrer a artifícios de propaganda que davam uma visão exagerada da miséria na América Latina e no Terceiro Mundo em geral. Quanto mais famélico o pobrezinho da foto, tanto mais dinheiro entrava no caixa... Essa propaganda incutia nos católicos do Hemisfério Norte um certo complexo de culpa pela situação do Sul, baseado na idéia de que o Terceiro Mundo era vítima do colonialismo dos países ricos. E que a riqueza do Norte era sugada do Sul[24]. O clima psicológico estava montado para que bom número de católicos, vitimados por essa baldeação ideológica inadvertida[25], pudesse engajar-se em campanhas anti-“mundialização”. Desenvolvimento da campanha Jubileu 2000 Foi notadamente esse o papel da campanha Jubileu 2000, lançada na Inglaterra, em 1994.[26] Dizendo-se inspirada no livro do Levítico, que prescrevia ao então Povo Eleito o cancelamento das dívidas nos anos jubilares, tal Campanha transformou-se, em 1997, numa coalizão de mais de 60 organizações inglesas, incluindo igrejas, sindicatos, associações humanitárias e grupos comunitários. No mesmo ano, nasceu Jubilee 2000/USA a partir de um Grupo de Trabalho Religioso para estudar o Banco Mundial e o FMI, composto de representantes de perto de 40 organizações católicas e protestantes. Em abril de 1998, era inaugurada a campanha africana no Ghana, com a participação de delegados de 20 países do continente. E em janeiro de 1999, foi lançada em Honduras a versão Latino-Americana e Caribenha da mesma campanha, com o concurso de delegações de 16 países. Em junho de 1999, com a participação da Campanha Jubileu, 50 mil manifestantes em Colônia e Stuttgart exigiam dos “sete grandes” o cancelamento da dívida dos países mais pobres. De fato, 100 bilhões de dólares foram cancelados pelo G7 e, antes do fim do ano, os EUA e a Inglaterra cancelavam 100% dessa dívida. Resta saber, quando aqueles países necessitarem de crédito novamente, se lhes será fácil obtê-lo... O mais importante, entretanto, do ponto de vista da formação da Internacional Rebelde, não são esses cancelamentos parciais das dívidas. Que um indivíduo, ou uma nação, resolva perdoar uma dívida, pode até constituir, de si, um ato altamente meritório. Mas no caso concreto, à medida que a campanha se desenvolvia, uma convergência crescente ia-se produzindo entre agências de ajuda católicas e movimentos notoriamente esquerdistas ou até anticatólicos. E o que os tornava eufóricos, não era o benefício que o cancelamento da dívida trazia a este ou aquele país pobre, mas sim o fato de que haviam conseguido maior união e “arrancado” dos ricos essa concessão. Em novembro de 1999 realizou-se uma Cúpula Sul-Sul, na África do Sul, reunindo “movimentos populares, religiosos e profissionais, bem como organizações políticas e outras coalizões de devedores provenientes de 35 países da África, Ásia, Pacífico, América Latina e o Caribe”. No manifesto final, declarava-se que o encontro se inspirava numa “ampla compreensão leiga e religiosa das tradições do ‘Jubileu’”, à procura das “causas estruturais (da dívida)”, e de “alternativas duráveis”. E anunciava a criação da Plataforma Jubileu Sul, destinada a reforçar alianças “solidamente ancoradas na luta histórica contra toda forma de opressão no quadro e na tradição antiimperialista”.[27] Claro envolvimento da “esquerda católica” com os contestatários Na França, uma primeira campanha de informação, secretariada pelo Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (CCFD), incorporava outros organismos católicos como Secours Catholique, Délégation catholique pour la coopération (DCC) , Justiça e Paz e institutos missionários femininos. E incluía também a Liga do Ensino (notoriamente laicista) e Solidarité Laïque, uma contrafação atéia da Caritas. A Attac França deu ampla cobertura à campanha de informações[28]. Por ocasião da reunião do Clube de Paris essa campanha organizada pelo CCFD convocou uma manifestação pública, da qual participaram a CGT (sindicato comunista), France Libertés (a fundação de Danielle Mitterand), a Liga Africana pelos Direitos do Homem, a Liga pelo Ensino e o MRAP (ligado ao Partido Comunista). Porém, de longe, o mais significativo foi a convergência católico-contestatária nas próprias arruaças. Os jornalistas Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair contam que, no dia anterior às manifestações de Seattle, “um fórum discutiu a OMC e o sistema de guerra global, enquanto o Jubileu 2000 organizava uma Missa”. E comentam: “O Jubileu 2000 promoveu um dos eventos mais criativos em Seattle, uma tentativa de formar uma cadeia humana ao redor do centro de exposições, para evitar que os delegados da OMC assistissem a uma reunião noturna com executivos das corporações Microsoft e Boeing. Milhares de pessoas participaram desafiando o mau tempo imperante. Ali, o Jubileu 2000 e a campanha 50 Years is Enough combinaram planificar uma semana de protestos em Washington DC contra as atividades dos representantes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional”[29]. Protestos estes que, como se sabe, degeneraram em incidentes. Dita convergência continuou por ocasião dos posteriores encontros internacionais e cúpulas alternativas. Frei Betto e o prêmio Nobel argentino Adolfo Pérez Esquivel uniram-se, em Outubro de 2000 em Nova Iorque, à marcha dos imigrantes ilegais e à Marcha mundial das mulheres[30]. O Centro Lebret e o CCFD participaram da Contra-Cúpula ASEM 3, que teve lugar em Seul (Coréia do Sul), no mesmo mês[31]. Em novembro, a revista “Témoignage chrétien”[32] destacou-se entre os organizadores do Encontro Internacional de La Villette, junto a organismos marxistas ou laicistas como Actuel Marx, Espaces-Marx, Liga do Ensino, Fondation Jean Jaurès, Attac, etc.[33]. Atuação decisiva dos católicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre 1) O papel do Cônego François HoutartNa organização do FSM de Porto Alegre colaborou o Fórum Social das Alternativas e do Centro Tricontinental, dirigido pelo Cônego François Houtart, que dispõe de vastos contatos internacionais. Assim descreve o jornal Le Monde o personagem: “François Houtart, crente por existencialismo, marxista por convicção, contestatário por necessidade, o sacerdote belga leva sua vida no modo de engajamento. .… Aos 76 anos, este cidadão do mundo .… colocou na cabeça a idéia de utilizar a web mundial para ‘fazer um inventário dos movimentos sociais de resistência ao capitalismo.’ .… Entre duas viagens a São Paulo ou a Dakar, é por Rede interposta que este septuagenário prepara o segundo Fórum Social Mundial, que reunirá em Porto Alegre todos aqueles que acreditam que ‘um outro mundo é possível’, e do qual ele se tornou um dos líderes”. O jornal relata em seguida que, depois da ordenação, ele passou quatro anos vivendo com os “explorados” da América Latina e que o resultado de suas análises sociológicas repousa na biblioteca de seu escritório da Universidade de Louvain “entre diversas edições das Bíblia, de estátuas incas e uma estatueta de Fidel Castro”[34]. Em 1976, ele funda o Centro Tricontinental para dar apoio “a uma multidão de movimentos de libertação nacional, desde a Frente de Libertação Moçambicana até os sandinistas nicaragüenses, passando pela ANC de Nelson Mandela”. Segundo “Le Monde”, por duas vezes o Vaticano quis expulsá-lo da Universidade, “mas o sacerdote está em paz com seu ‘marxismo’”, que “não ‘desemboca no ateísmo’” porque “sua fé não o abandonou jamais” (“se bem que o Padre não reze senão raramente a missa”, acrescenta o jornal)[35]. 2) “Chico” Whitaker e Comissão Justiça e Paz da CNBB: ação decisivaNo capítulo anterior, foi relatado o papel de Francisco Whitaker, Presidente da Comissão Justiça e Paz da CNBB e vereador do PT por São Paulo, na reunião nos escritórios de “Le Monde Diplomatique” onde foi orquestrado um “Contra-Davos do Sul” a ser realizado em Porto Alegre. Um mês depois desse encontro, segundo Bernard Cassen, “Chico [Whitaker] e Oded [Grajew] haviam trabalhado com sua tradicional eficiência e constituído um coletivo de oito entidades que aceitavam assumir a organização do FSM”. Num jantar em Porto Alegre, foi decidido que esse coletivo “tomasse unilateralmente a iniciativa” da convocação internacional. O que foi feito em Genebra. Cumpre ressaltar que, nesses preparativos, “Chico” Whitaker agiu enquanto secretário da Comissão Justiça e Paz, que desde então fez parte oficialmente do Comitê Organizador. No Fórum de 2002, Whitaker deverá dirigir uma oficina promovida pela mesma Comissão, visando propiciar um encontro pessoal entre membros de Comissões Justiça e Paz do Brasil e de outros países[36]. Quanto ao Fórum Social Mundial 2003, Whitaker e Cassen foram nomeados para estabelecer “critérios para a escolha de um local”, na Índia[37]. 3) Apoio logístico da Pontifícia Universidade Católica de Porto AlegreMais protuberante ainda revelou-se o apoio logístico e financeiro concedido ao FSM pela Universidade Católica de Porto Alegre. De fato, o coração do encontro foram as sessões matutinas, realizadas no imenso auditório do Centro de Eventos da PUC gaúcha, alugado com um desconto de 40%. Nesse auditório é que se desenvolveu o show inaugural com a participação, como já dissemos, de uma atriz semi-nua proclamando que, “a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo”. Foi também do campus universitário que partiu a Marcha da qual participaram grupos feministas precedidos de uma faixa com os dizeres “O aborto é possível”[38]. Pode uma universidade pontifícia – que deveria ser campeã da Moral e do Evangelho – correr o risco de acobertar novamente em 2002 a promoção da imoralidade e do massacre dos inocentes? 4) Participação ativa de representantes emblemáticos da Teologia da LibertaçãoNa inauguração do Fórum, foi lida uma carta de D. Pedro Casaldáliga, o autoproclamado “monsenhor martelo e foice” de São Félix do Araguaia[39]. E compareceu D. Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à CNBB, participando inclusive de oficinas. Frei Betto discursou na primeira sessão do Eixo III, presidida pelo Cônego Houtart, desvendando um sentido novo de ecumenismo: “as sementes dessa cultura da solidariedade já se encontram nas grandes tradições religiosas, nos valores comunitários dos povos indígenas tribalizados, na experiência dos místicos e no testemunho de revolucionários que, como Jesus, Gandhi e Che Guevara, deram suas vidas para que outros tivessem vida”. Dois ex-religiosos também estiveram ativos, mas não chegaram a falar: Genésio Darci (o ex-frei Leonardo Boff), hoje consagrado à eco-teologia, e o ex‑padre Olivério Medina, porta‑voz das Farc, proibido pela polícia de participar de atividades políticas no Brasil. Diversas entidades católicas estiveram presentes, animando oficinas, articulando coalizões e promovendo ou assinando declarações e apelos contestatários[40]. * * * Vistos esses antecedentes da participação católica no Fórum Social de Porto Alegre podemos concluir que tinha razão o comunista francês Michel Löwy ao afirmar, no painel do terceiro dia do Eixo IV: “A renovação do internacionalismo não passa somente pelas forças sindicais e políticas mais radicais do movimento operário e socialista em todas as suas componentes (dos marxistas aos libertários)”. Porque, de fato, “os cristãos radicalizados são uma componente essencial, tanto dos movimentos sociais do Terceiro Mundo – muitas vezes inspirados, sobretudo na América Latina, pela Teologia da Libertação – quanto associações européias de solidariedade com as lutas dos países pobres .... Eles trazem uma contribuição importante na elaboração de uma nova cultura internacionalista”.[41] Mil vezes hélas!, mas quão verdadeiro... Como ficou dito no início deste capítulo, a contribuição de católicos é capital para que a contestação anticatólica tente atingir seus fins. Por isso, as cúpulas do movimento progressista na Igreja esforçam-se extraordinariamente para mobilizar os fiéis em favor da contestação revolucionária. Mas estes parecem escapar-lhes das mãos... Capítulo IIIBerlim 1989/Gênova 2001“Morto” com a queda do Muro, “ressuscita” agora o comunismoGênova, quarta-feira, 18 de julho de 2001Os organizadores do Fórum Social de Gênova (FSG) – oposto à realização da Cúpula de Chefes de Estado do G8 – anunciam que se preparam para invadir a “zona vermelha” onde se desenvolverá o encontro e que tentarão repetir o feito de Seattle, onde dois anos antes haviam conseguido impedir a realização da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio. Sexta-feira, 20 de julhoPor volta das 3h da tarde, a vanguarda do cortejo de 20 mil manifestantes aproxima-se da zona vermelha e os policiais lançam os primeiros gases lacrimogêneos. Por mais de uma hora, dão-se cargas e contra-cargas, os Tute Bianche e milhares de adeptos da “resistência passiva” hostilizam a maior parte das forças antimotins. Na retaguarda e nos flancos, as hordas anarquistas do Black Bloc – cinco mil agitadores, segundo o ministro italiano do Interior – começam a destruir tudo à sua passagem com fúria devastadora. Gênova vira um campo de batalha. Por todos os lados há furgões e carros queimados, vitrinas quebradas, prédios em chamas, cabines telefônicas destruídas e latas de lixo reviradas. Balanço da jornada de violência: 1 morto e 172 feridos, dos quais 40 pertencem à força pública e 7 são jornalistas. Os danos materiais são incalculáveis. Sábado, 21 de julhoAglomera-se a massa humana dos 200 mil manifestantes. Quando a vanguarda entra na Avenida Torino, os radicais do Black Bloc adentram a manifestação e a intifada contra os agentes da ordem recomeça. Durante horas chovem pedras e coquetéis molotov, retrucados com gases lacrimogêneos. Quando os policiais avançam sobre os mais violentos, estes se diluem entre os demais contestatários... para reaparecer pouco depois em outros locais, incendiando carros e cabines, destruindo vitrines de comércio, agências de Correio e bancárias, um posto de gasolina, o andar térreo de um prédio de escritórios públicos etc. Seis horas depois do início das desordens contam-se 228 casos de atendimento de urgência, entre policiais, jornalistas e manifestantes. Domingo, 22 de julhoAs contas são feitas. “O número de lojas danificadas ascende a pelo menos 400 – assegura Paulo Odone, presidente da Câmara de Comércio – e um milhar as que precisarão ser pintadas novamente. Se forem acrescentados os danos em imóveis urbanos, sinais de trânsito, semáforos, cabines telefônicas, escolas e carros, os prejuízos subirão a 50-60 trilhões de liras, sem contar as perdas dos dias sem trabalhar”. Metamorfoses da Revolução Como quem acorda de um pesadelo, nas semanas seguintes a opinião pública européia e de todo o Ocidente tentou interpretar os acontecimentos de Gênova. Os que achavam que o comunismo havia morrido com a queda do Muro de Berlim não compreenderam por que, nas cidades mais ricas de nossos dias, dezenas de milhares de manifestantes insatisfeitos saíram às ruas para externar seu ódio às atuais estruturas sociais e destruir os “símbolos do capitalismo”. Porém, essas explosões não poderiam surpreender observadores mais sagazes e não condicionados por visões economicistas e materialistas da História. De fato, o comunismo no século XX não pode ser visto como um fenômeno, monstruoso é verdade, mas isolado. Ele faz parte de um processo que começou antes dele e que continuou depois. Conforme mostra Plinio Corrêa de Oliveira, o comunismo foi a etapa mais avançada de uma crise moral e religiosa que vem se aprofundando desde o século XVI e que teve como predecessores a Pseudo-Reforma Protestante e a Revolução Francesa[42]. Assim, é ilusório imaginar que, com o desmoronar dos regimes comunistas, uma Revolução tão extensa e profunda pudesse, da noite para o dia, evaporar-se como um líquido pútrido ao calor do sol. Quando muito a Revolução haveria de fazer uma retirada estratégica para deixar passar o vento adverso e preparar a desforra. À maneira dos beduínos no deserto que, ante a tempestade de areia, deitam o camelo e se abaixam atrás dele. Passado o vento impetuoso, montam novamente e prosseguem seu caminho. Foi o que ocorreu, por exemplo, na França do século XIX, durante o período da Restauração monárquica. Um observador superficial acharia que, com a ascensão ao trono de Luiz XVIII, a República estava derrotada e que cessara a convulsão revolucionária. Porém, apenas algumas décadas mais tarde, passando por sucessivos avanços e recuos, o regime republicano vencia estavelmente com a Terceira República[43]. É forçoso reconhecer que, nos 12 anos que vão desde a queda do Muro de Berlim até o saque de Gênova, vem se produzindo um fenômeno análogo ao da Restauração na França. Tanto mais quanto faltou um esforço de memória coletiva, como ocorreu com os crimes do nazismo. A mídia, de modo geral, evitou focalizar o tema. As revelações terrificantes e o quadro de conjunto apresentados pelo Livro Negro do Comunismo tiveram, assim, pouco efeito, e a grande maioria do público começou aos poucos a esquecer o horror que foi o comunismo. A ponto de, nos próprios países do Leste europeu, antigos líderes do PC voltarem ao governo por via eleitoral e, no Ocidente, alguns partidos comunistas poderem dar-se o luxo de participar do governo. Mais ainda, uma corrente “ecológico-anarquista” levanta a cabeça e torna-se a ponta de lança de uma nova esquerda, retomando as bandeiras libertárias da Revolução da Sorbonne[44]. Da velha hidra revolucionária, surge essa nova cabeça com ares de novidade. Revolução Cultural: prioridade do “novo proletariado” A metamorfose do comunismo e seu requinte anárquico vinham sendo preparados desde antes da queda dos regimes comunistas e da abertura da Cortina de Ferro. E fazem parte da mesma Revolução. Desde os anos 60, uma esquerda neocomunista tomava distância da ditadura soviética, dava as costas ao “capitalismo de Estado” e concebia a Revolução sobretudo como a luta de um neoproletariado contra as “alienações” produzidas pela cultura dominante: os jovens em revolta contra a sociedade tradicional; o movimento feminista em luta contra as estruturas patriarcais da família; os marginais (drogados, homossexuais, prostitutas e mesmo criminosos) defendendo o “direito” de levar “estilos de vida alternativos”; os imigrantes irregulares; os grupos étnicos minoritários; as comunidades indígenas; o movimento ecológico, propugnando a volta à natureza; e em geral todos os que, não só recusam as super-organizações estatais ou privadas, mas se colocam contra toda forma de vida institucional. A prioridade imediata passou a ser a conquista da “liberdade”. Tal revolução atingia a vida quotidiana, com o favorecimento de experiências de “comunas” autogestionárias e, de modo geral, a diluição gradual dos poderes do Estado e sua disseminação em comunidades de base. Por exemplo, as cooperativas de assentados. Assim, nos flancos da estrutura social apareceu um sem-número de “coletivos” e “grupos alternativos” autônomos, as ONGs etc., que passaram depois a orquestrar-se e constituem hoje a aile marchante, de onde saem os líderes e a grande massa de manobra da revolução “não global”. Exemplo típico desses grupos “alternativos” são os Centros Sociais Autônomos italianos, que vieram a tomar maior visibilidade em 1995, com a criação, a partir do Centro Leoncavallo de Milão, da rede dos Tute Bianche, figura emblemática da luta contra a globalização. Uma breve descrição de uma visita a um desses centros, na periferia de Roma, é feita pela escritora canadense Naomi Klein, autora do best-seller antiglobalização No logo: “Os centros sociais são edifícios abandonados – depósitos, fábricas, fortes militares, escolas – que foram ocupados por invasores e transformados em grêmios culturais e políticos, explicitamente livres do mercado e do controle do Estado. Alguns estimam que há 150 centros sociais na Itália. O maior e mais antigo – Leoncavallo em Milão – é praticamente uma cidade, com diversos restaurantes, jardins, livraria, cinema, uma rampa de skateboard coberta e um clube .... “Mas os centros sociais são também o início de uma crescente militância política na Itália, colocada para explodir no palco do mundo, quando o G8 se reunir em Gênova no mês que vem. Nos centros, a cultura e a política se mesclam facilmente; um debate sobre ação direta vira uma grande festa ao ar livre; uma festa rave se realiza ao lado de uma reunião sobre a sindicalização de trabalhadores em fast foods”[45]. Aspectos despersonalizantes e negativos do mundo moderno: caldo de cultura para a rebelião “não global” Na década de 90 acentuaram-se, um pouco por toda parte, alguns processos globalizantes que dão ao homem da rua a impressão de um mundo orwelliano – gigantesco, frio, distante e inumano – sendo construído sobre sua cabeça, semelhante ao universo descrito por George Orwell, em sua obra 1984. Isso contribuiu para tornar simpáticas algumas das propostas da neo-esquerda radical. Tais processos de tipo orwelliano ocorrem nos mais variados campos: a constituição de super-Estados, idealizados por técnicos desvinculados da realidade; as megafusões de empresas multinacionais e bancos, diante das quais os particulares parecem anões impotentes; as experiências assustadoras com embriões, a clonagem de seres humanos e o espectro de um mundo science-fiction dirigido por um grupo de cientistas; a formação de imensas coalizões para intervir manu militari em conflitos locais, empregando armas ultra-sofisticadas; a imposição arbitrária de medidas como a “moeda única” ou a construção de um imenso mercado financeiro mundial, abalado por uma seqüência quase ininterrupta de crises e pelo espectro de um “crack” financeiro; a criação de ameaçadores fichários informatizados, contendo quantidades incalculáveis de dados sobre cada indivíduo; o crescimento desordenado de megalópolis pardacentas, sujas, agitadas, rodeadas de imensas e preocupantes periferias de novos imigrados; a extensão e o poderio incontrolável de extensas redes de crime organizado, contra as quais o poder judiciário e as polícias parecem desarmadas, quando não cúmplices; a invasão, dentro de casa, através da TV e da Internet, de borbotões indesejados de informações instantâneas e de pornografia; e finalmente leis cada vez mais constrangedoras e ameaçadoras para o indivíduo, a pretexto de combater discriminações etc. Compreende-se que ante esse mundo gigantesco e artificial tenham aparecido, como simpáticos, a vida natural, as comunidades fechadas, as cidades pequenas, os alimentos biológicos etc. E que opções como Roquefort x McDonald, milho natural x Monsanto, rebanho x agro-indústria, tenham feito balançar muitos espíritos pouco habituados a analisar os acontecimentos em profundidade. Ora, é exatamente no mar desse descontentamento difuso e profundo, dessa insegurança no julgar, que as correntes da nova esquerda radical têm sabido pescar, procurando atrair para a causa da “antiglobalização” amplos setores de opinião. Um é o pescador: o neocomunismo anárquico. Os peixes que ele quer puxar para seu cesto são os componentes da opinião pública mundial. A rede que ele lança é o descontentamento com essa globalização religiosa-sócio-política-econômica, já em curso. Em nome da luta de classes Norte/Sul, renasce ofensiva contra o capitalismo Uma dificuldade, porém, surge diante dos mentores do neocomunismo. Eles não podem despertar as desagradáveis reminiscências, ainda recentes, deixadas pelo império soviético. É preciso disfarçar. A nova Revolução não pode ser aquela dos proletários contra os patrões, como nos velhos moldes, mas sim a dos povos pobres do Sul contra os povos ricos do Norte e dos defensores da natureza contra a depredação provocada por um desenvolvimentismo globalizado e maluco. Assim, sob capa de uma retórica antiglobalização e contra o neoliberalismo vai aparecendo um combate insidioso à propriedade privada, à livre iniciativa, ao capitalismo. Não para voltar ao capitalismo de Estado e aos fracassados planos qüinqüenais da União Soviética, mas para avançar rumo a uma sociedade composta de pequenos grupos autogestionários, que praticam uma economia de subsistência nos moldes ecológicos dos povos indígenas. Isto não nos levará a uma situação completamente caótica? Capítulo IV“Attac passou por aqui...”Após o encerramento do Fórum de Porto Alegre, seu Comitê Organizador publicou uma Carta de princípios destinada a orientar a continuidade da iniciativa. O documento assevera que o FSM se opõe “ao uso da violência como meio de controle social pelo Estado” e que não podem participar de suas atividades as “organizações que atentem contra a vida das pessoas como método de ação política”[46]. Porém, nada indica que nos próximos encontros seja proibida a participação dos representantes do governo cubano e dos guerrilheiros das FARC, acolhidos por ruidosas ovações em Porto Alegre... Sobretudo é chocante que a “Carta” condene o uso da violência unicamente por parte do Estado e que sejam admitidas entidades – como o MST – que atentam contra os bens de terceiros ou até contra a integridade física de pessoas. Descuido na redação? Ou aceitação de que há formas legítimas de violência? Há antecedentes que mostram ser muito ambígua a posição face à violência de algumas das organizações propulsoras e participantes do FSM. Mesmo não falando de organizações que, direta ou indiretamente, usam da violência – FARC, zapatistas, grupos indígenas, MST, Tute Bianche etc. – concentremos nossa atenção sobre a Attac, que se apresenta como “séria”, “estudiosa”, “moderada” em suas propostas, mas que na verdade se relaciona com os que propõem e praticam a violência. Da análise resultará que os comerciantes de Göteborg, na Suécia, exprimiram bem a realidade ao afixarem nas vitrines de suas lojas saqueadas e destruídas, um letreiro com os dizeres: “Attac passou por aqui”...[47] Importância estratégica das manifestações violentas “antiglobais” Desde a queda do Muro de Berlim, o moral das hostes esquerdistas estava muito baixo. O evento que lhes trouxe alento psicológico foi sua atuação em Seattle, onde entraram dois ingredientes que se tornariam invariáveis no menu das Cúpulas alternativas: uma conferência acadêmica e, paralelamente, uma batalha de rua[48]. Segundo José Seoane e Emilio Taddei, compiladores do livro De Seattle a Porto Alegre, publicado pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, “Seattle foi em escala mundial ‘o batismo de fogo’ e o momento de consolidação deste vasto, diverso e inusitado movimento planetário contra a injustiça”[49]. Nos protestos posteriores a Seattle houve uma escalada gradual e inexorável da violência. Em Melbourne, em setembro de 2000, mais de 2 mil policiais antimotim tiveram de batalhar durante quase 72 horas com os manifestantes. Em Praga, a reunião do FMI foi suspensa antes do programado por causa dos distúrbios. Em abril de 2001, a Cúpula das Américas, em Québec, deu ocasião a um movimentado braço de ferro entre os militantes e as forças da ordem. Em Göteborg, em julho do mesmo ano, 40 mil manifestantes repudiaram a Cúpula da União Européia e o Congresso teve de ser suspenso antes do fim, por causa da violência nas ruas. Finalmente, a “batalha de Gênova” deixou um morto e 400 feridos. Ilegalidade e violência: para os contestadores, meios legítimos de ação “pacífica” Em geral nas democracias modernas as autoridades policiais determinam áreas e horários nos quais as manifestações são proibidas ou limitadas, para garantir a livre circulação dos cidadãos e o direito das autoridades de se reunirem num ambiente apropriado. Porém, os organizadores dos Fóruns alternativos passam por cima dessas barreiras. A necessidade de tornar eficaz a luta revolucionária os eximiria das exigências da “legalidade”... É o que afirma o sociólogo Boaventura de Souza Santos, em palestra proferida no FSM: “Ao nível das formas de atuação, o movimento tem de proceder a uma distinção fundamental entre a violência que deve ser recusada, e a ilegalidade que deve ser acolhida sempre que os meios legais não estejam disponíveis ou não bastem .... Todos os grandes movimentos democráticos começaram com ações ilegais”. Portanto, “há que elaborar uma teoria democrática da ilegalidade não violenta”[50]. Essa teoria justificaria também atos de vandalismo, como as depredações de lojas McDonald’s ou de plantações transgênicas. O próprio Fórum de Porto Alegre serviu, aliás, de ocasião para mais uma dessas destruições, transformando José Bové no “herói” da jornada. Na defesa de Bové – quando este investiu contra a McDonald’s, na França – Attac chegou a declarar oficialmente que a violência “simbólica” seria legítima quando não afeta pessoas e causa danos moderados[51]. Sem explicar, porém, como se evita que a violência “moderada” se torne descontrolada, e sem traçar os limites entre uma e outra. Outro argumento aduzido por um militante da Attac França é o de que seria legítimo violar a lei em nome do número: “Quando 100 mil pessoas vêm a Millau, no dia do processo dos ‘desmontadores de McDo’, elas legitimam com isso esta ação, entretanto absolutamente ilegal!” [52]. Por que não considerar, então, os outros 59 milhões e 900 mil franceses que ficaram em casa!? A questão da violência é sistematicamente levantada nos debates prévios às contra-Cúpulas e, por vezes, entidades mais sérias recusam-se a participar delas por não existirem garantias para o desenvolvimento pacífico do projetado evento[53]. Notadamente houve debates prévios à contra-Cúpula de Gênova, por causa dos “Tute Bianche que haviam, de maneira metafórica, ‘declarado guerra’ às autoridades italianas” e do sindicato extremista COBAS, “cujos laços com outros elementos dos centros sociais faziam temer violências que ultrapassavam o quadro fixado pelo GSF”[54]. A curiosa união de “pacifistas” e violentos Ademais, os organizadores aprovam os treinamentos nos quais os manifestantes aprendem a neutralizar a ação da polícia deixando campo aberto para que os mais extremistas dêem livre curso a seus instintos destruidores. Tais treinos começaram já em Seattle, prosseguiram em Washington – incluindo até a análise de vídeos da batalha anterior para corrigir erros – em Göteborg e em Gênova. E foram objeto de amplas reportagens no boletim da Attac feitas pelos representantes da associação nas respectivas manifestações[55]. Mais ainda, as ações são combinadas. Depois dos distúrbios de Praga, o responsável pelas relações internacionais da Attac, Aguitton, declarou que o que está em jogo é “seguir o exemplo da experiência americana, onde, apesar de desacordos importantes, as redes de jovens e o sindicalismo, no caso a AFL-CIO, puderam estabelecer um diálogo e coordenar suas ações”[56]. Em Praga esse trabalho de coligação parece ter sido bem sucedido, permitindo uma minuciosa preparação dos protestos: “Esses grupos [os chamados “grupos por afinidades”] se reuniam num ‘centro de convergência’ que permitia aos delegados elaborarem os planos das manifestações e aos presentes de se formar e de conversar com outras delegações. Uma vez estabelecido o plano da manifestação, cada grupo escolhia seu percurso em função de suas características, arriscado ou não, curto ou longo, etc. Todo o mundo tem suas palavras de ordem, baseadas na ação radical não violenta”[57]. No relato do mesmo Aguitton sobre os distúrbios de Québec, fica ainda mais clara essa estratégia de conjunto por onde as tarefas são divididas conforme as “sensibilidades”: “Em Québec, como em Praga, em setembro último, foram elaborados percursos identificados por cores, cada um indicando um grau de risco e de engajamento. O grupo verde era o mais pacífico, tanto pelo percurso escolhido quanto pelas formas das ações. O grupo amarelo, organizado pelo GOMM, dirigia-se, também com métodos pacíficos, para a parte do muro mais próxima ao centro de conferências. .… O grupo vermelho, enfim, formado pelo CLAC e o CASA, era o mais decidido. Mas as coisas estavam claras: uma sonorização repetia com regularidade para os manifestantes que o cortejo envolvia riscos e que outras escolhas eram possíveis. “Esta combinação entre a clareza das opções deixadas a cada um e o caráter simbólico – ou em todo caso de uma violência limitada – das ações levadas a cabo facilitava a simbiose entre os diferentes grupos de manifestantes e o caráter popular das iniciativas, incluídas as que se desenvolviam em torno do muro” [58]. No caso de Göteborg, o grupo local da Attac enviou um convite para participar da contra-Cúpula, informando que “a Attac, enquanto organização não tomará parte na manifestação e tampouco na ação dos macacões brancos [os Tute Bianche] (mas os membros de Attac podem evidentemente participar delas individualmente)” [59]. A aliança estratégica entre a falsa moderação e a violência declarada foi se aperfeiçoando. Christophe Aguitton em seu balanço após o inferno de Gênova alegra-se de seu bom funcionamento: “A preço de horas e horas de discussão, a aliança funcionou e até se reforçou com o correr do tempo. A aliança assim criada permitiu integrar num marco comum passeatas totalmente pacíficas enquanto outros praticavam uma ‘violência simbólica’, e desta maneira representar a maioria esmagadora dos manifestantes” [60]. Balanço: 1 morto, 400 feridos, 400 lojas destruídas, várias dezenas de trilhões de liras de prejuízos em imóveis urbanos arrasados, quatro dias de trabalho perdidos, uma grande cidade em estado de choque… Dirigentes e militantes justificam a violência, a posteriori Depois das violências em Göteborg houve um debate no seio da Attac. A vice-presidente da associação, Susan George, condenou imediatamente essas violências por razões táticas. Afirmou que elas “dividem o movimento” e afastam os moderados[61]. Porém, a reação majoritária dos militantes e de alguns dirigentes foi a de justificar a violência e condenar... Susan George! O primeiro a abrir fogo foi o próprio responsável pelas relações internacionais da Attac França, Christophe Aguitton. Segundo ele, “deve-se compreender a impaciência e as frustrações de centenas de milhares de militantes que não vêem ainda nenhuma flexão das políticas [neoliberais]”[62]. Para Alberto Velasco, presidente da Attac de Genebra, “a verdadeira violência é a dos Estados que reduzem suas políticas sociais ou das multinacionais que colocam os empregados na rua”[63]. Já o administrador Pierre Khalfa defende que a “escolha pela não violência” não implica em “dobrar-se aos desejos das autoridades policiais e dos governos”. Donde “o caráter ativo de nossas ações, que podem, portanto, em certos momentos, conduzir a confrontações tensas com a polícia”[64]. O coordenador dos grupos de juventude da Attac em Genebra, Yoann B., afirma não ser possível “privar-se das forças de extrema esquerda” e que é preciso “encontrar uma solução para integrá-las no movimento, a fim que possam se exprimir”[65]. Essa onda de protestos da base militante da Attac forçou Susan George a voltar atrás e fazer um ato de arrependimento público: “Não sou ‘pacifista’ ou gandhiana. Penso que a violência pode ser justificada; tudo depende das circunstâncias e do contexto político [sic !]. Podemos perfeitamente nos manifestar usando da confrontação física, como a entendem os Tute Bianche (‘meu corpo é uma arma’) .... Tudo é questão de dosagem”[66]. Diálogo estratégico... até com o violento Black Bloc A “batalha de Gênova”, muito mais destrutiva que a de Göteborg, deu azo a novas análises sobre a posição do movimento face à violência. Coube a um membro do Conselho de administração e do Bureau executivo da Attac França, Pierre Khalfa, a tarefa de lavrar um documento de fundo. Ele parte do pressuposto de que “é quimérico acreditar que o capitalismo aceitará a imposição de medidas que questionem seu funcionamento sem reagir violentamente”. A pergunta portanto é: “Como preparar-se para essa violência, como responder a ela?”. A Attac deve “atingir simultaneamente quatro objetivos”: – “manter e reforçar os laços com a opinião pública”; – “evitar a divisão do movimento”; – “ser capaz de assumir a radicalidade crescente do movimento”; – e “continuar a demonstrar sua força através de manifestações massivas”. Para isso, é preciso primeiro evitar “uma escalada rumo ao extremismo nas formas das ações”, para que não seja interrompida “a corrente de simpatia que encontra nas opiniões públicas, o que explica nossa escolha da não-violência”. Mas “essa recusa [da violência]”, acrescenta Khalfa, “deve simultaneamente acompanhar-se do assumir a radicalização crescente de uma parte do movimento”, o que supõe “a adoção de formas de ação que integrem simbolicamente este radicalismo”. Khalfa introduz claramente no quadro os grupos violentos: “É nesse marco que devemos situar nossas relações com o Black Bloc. Mesmo que não se trate de um grupo estruturado, mas de uma corrente de geometria variável, ele é portador de uma orientação que fez a opção a favor da confrontação violenta sistemática com a polícia e da destruição dos ‘símbolos do capitalismo’ (agências bancárias, carros...) .… É preciso dizê-lo claramente: essa orientação não é a nossa. Ela só pode acarretar a diminuição e o isolamento do movimento e é propícia a todas as manipulações. Porém, seria um erro rejeitar essa corrente como estranha ao movimento e considerá-la apenas como um punhado de provocadores”. E mais adiante: “essa corrente [dos Black Bloc] pode atrair um certo número de pessoas desagradadas com o sistema e que pensam realmente poder dessa maneira [pela violência] mudar as coisas”. A Attac procura, pois, fazer um duplo jogo: “ao mesmo tempo devemos indicar claramente que os métodos e orientações do Black Bloc não são os nossos e de outro lado não rejeitá-los e tecer um diálogo político com eles”[67]. As atitudes violentas das manifestações talvez tenham contribuído para que, depois dos atentados de 11 de setembro, boa parte da população mundial venha suspeitando de ligações dos novos contestatários com o terrorismo. Para onde irá a Attac? Em resumo, a atitude da Attac face à violência talvez se espelhe adequadamente na carta aberta a Susan George escrita por Cyril C., um adepto da seção Attac/Paris-Nord-Ouest, e publicada no boletim da associação: “Estamos engajados numa verdadeira luta de classes a nível planetário, defendendo globalmente os dominados contra os dominadores. Um dos poucos lugares que ainda nos restam (por quanto tempo?) para exercer nosso poder é a rua .... Quem acaba ditando suas preferências é também e sobretudo quem dispõe do poder de se impor, aquele que mete medo no adversário, que inspira temor. .... Penso nesse sentimento de perigo mais ou menos difuso que impregna suas manifestações [do movimento Reclaim The Streets], perigo para o outro lado, evidentemente. O movimento operário jamais foi tão forte e eficaz do que quando não respeitava as conveniências e era percebido como perigoso pelos patrões, como diretamente atentatório a seus interesses. Quem pode dizer que inspiramos hoje um tal sentimento em alguém? Penso que essa constatação deveria nos levar a refletir sobre nossos meios de ação, em lugar de voar em socorro de nossos inimigos, denunciando nossos maus elementos...”[68]. Na medida em que essa opinião exprime uma tendência profunda existente nas bases da Attac, a associação corre o risco de transformar-se numa “organização terrorista” – no sentido técnico da palavra, explicado em recente conferência por Noam Chomsky: “Uma breve elucidação tomada de um manual do exército dos EUA é bastante adequada: terror é o uso calculado da violência ou da ameaça de violência para obter objetivos políticos ou religiosos através de intimidação, coerção, ou provocação de medo. Isto é terrorismo”[69] . Como diz o Evangelista: “Pela tua própria boca te julgo...”[70] Capítulo V“Cato-comunismo” italiano:
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